sábado, 27 de dezembro de 2008

Ilhéus II

São quatro muros lívidos de mármore
Encarcerando a alma sob um céu vazio.

São na cidade os contornos de betão defuntos,
Nas ruas que o Belo há muito desertou.

São os espinhos da coroa de um amor insatisfeito
Que nada redimem e tudo corrompem.

É a bruma que esconde todos os horizontes.

É o que nos mata antes da Morte.

É a solidão.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Amhrán

Once i heard of a song. They say it was old, that the music was the wind blowing on rocky shores and the voice was uttered by the first man, still in the Earth's womb, crying bitterly for he knew the time had come to part from his mother.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Fora a cidade, dentro a ilha

Estremunhado das páginas de um livro, desço por fim do monstro metálico, que segue rugindo detestável. E dentro o silêncio da ilha. O ar fresco da noite não me reconforta, fétido da podridão da cidade caótica. E dentro o aroma húmido de mar e bruma, da terra túmida de fertilidade vulcânica. Ferem-me os contornos inestéticos das arestas de betão. E dentro desenha-se o vulcão ao longe para lá do canal, a lua santificando o seu cume. Fora o corpo languesce na cidade. E dentro correm as lágrimas da minha insularidade.


(o itálico neste texto não corresponde a palavras de outrem.)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

An t-aisling

Não os conheço. A ela vira-a antes, no sonho. Dizia-me com serenidade que morreria em breve, e pareceu-me que sorria levemente ao afirmá-lo. Era o cansaço. Estava na altura. E como num filme, saltei de cena. Já morria, sentada nas escadas. Olhava-me agora num misto de paz e aflição. Talvez não porque tivesse medo, mas porque não podia evitar o último estertor da vida que quer continuar, mesmo quando a exaustão do corpo e da alma reclamam o fim. No meu colo chorava uma criança. Eram familiares. Não os conhecia, mas sentia uma profunda tristeza. Suspeito até que chorava e gemia no meu sono. E com um último olhar terno, proferiu um derradeiro adeus, interrompido pela morte. Morreu. E a criança chorava, no meu colo. Não sei quem era.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Vergílio Ferreira

Tecida numa malha de um existencialismo desconcertante, a narrativa avança sincopada, num ritmo estonteante, que faz com que o leitor prossiga folegando a custo, tropeçando em abismos de desgraça súbita e desespero, para mais tarde melhor sentir a vertigem dos momentos de plenitude do ser, do assombro causado pela revelação da suficiência de si mesmo. E sempre a morte, espreitando e atacando inopinadamente, ora na planície monótona, ora sob a neve que cobre uma qualquer terriola escondida na montanha.

Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando - sou o Homem! Do desastre universal ergo-me enorme e tremendo. Eu.

Vergílio Ferreira, in Alegria Breve

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Ilhéus I

Da tua face as searas
Ondulam acariciadas
Pela doce brisa de Eros.

Sur l'herbe drue, nourrie par le sol volcanique, nous étendrions nos corps alourdis par le chagrin.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Horizonte em sangue

Acordávamos cedo, demasiado cedo. A todos, o sono ainda nos agarrava aos colchões dos beliches, que começavam a arrefecer privados das únicas fontes de calor naquelas manhãs frescas de Verão. Mas contra ele lutava a vontade de, dia após dia, mergulhar em três mil anos de passado. Três mil, se os conto bem. Atravessávamos então a vila, onde a noite ainda teimava em ficar, deixando-se penetrar a custo por uma luminosidade tímida. Era sempre a subir e, nas ruas estreitas, já algumas mulheres esfregavam religiosamente as paredes de suas casas, como se a vida dependesse do branco irrepreensível que, avançando o dia, refulgiria sob o sol alentejano. Até que, virando um esquina, encontrávamo-nos face à grande escadaria que levava à ermida. Na memória falta-me o nome, mas sei que era branca do branco das casas, e um azul celeste pintava-a em redor. As traseiras davam para a escavação - um Deus orgulhoso não olha de frente os seus antecessores sem nome, dormindo esquecidos dos homens sob a terra que desconhece o oblívio. Sentados nas pedras sobremaneira antigas, esperávamos que o dia viesse permitir-nos o trabalho. Quando o fazia, o Sol erguia-se em ferida, derramando sangue no horizonte, tingindo-o de um encarnado tão intenso, que a sua aparência sobrenatural gravou no meu espírito as palavras que aqui escrevo decorrido mais de um ano desde então.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Um desafio

Aqui vai a resposta a um desafio proposto por uma libelinha: escolher um grupo ou artista e responder às questões com títulos de músicas. Nunca faço estas coisas, mas não recuso nada a uma libelinha!! Pode ser perigoso! De resto, não vou "marcar" ninguém. This is just for you, little firefly.

Artista: Sigur Rós

1. És homem ou mulher? "starálfur (staring elf)"


2. Descreve-te:
"hjartað hamast (the heart pounds)"


3. O que as pessoas acham de ti? "við spilum endalaust (We play endlessly)"


4. Como descreves o teu último (antes do actual) relacionamento?
"gobbledigook" (sem tradução, eu chamar-lhe-ia Prankster boy)


5. Descreve o estado actual da tua relação amorosa: "viðrar vel til loftárása (good weather for airstrikes)"


6. Onde querias estar agora? "svo hljott (so quiet)"


7. O que pensas a respeito do amor?
"inní mér syngur vitleysingur (inside me a lunatic sings)"


8. Como é a tua vida? "saeglópur (a lost seafarer)"


9. O que pedirias se pudesses ter só um desejo? "hoppípolla (jumpin' puddles)"


10. Escreve uma frase sábia: "ágaetis byrjun (an alright start)"

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Um concerto

Hoje, sem as ver, senti as paisagens da Islândia traduzidas em música. O branco e os sons da neve, lagos e montanhas e planícies desoladas paradas no tempo, imóveis: vi-os nos acordes lentos e repetitivos, na voz etérea que se eleva como o som de um vento solitário percorrendo imensidões. Mas também a fúria vulcânica, pulsando sob a calma aparente, rompendo a terra sem aviso, recriando-a: vi-a na música que cresce pacientemente, até que explode em vibrações de uma densidade e intensidade tais que desfazem o último laço que ainda nos ligava ao chão que pisávamos, para nos levar para norte, bem para norte. E agora vou dormir. Talvez sonhe com a aurora boreal.

domingo, 2 de novembro de 2008

La vague

Et cette douleur qu'il crut éteinte s'insinuait à nouveau comme une vague océanique lente et presque imperceptible - dont l'épicentre était le coeur ébranlé par le soupçon inconscient d'avoir été oublié, par cette absence silencieuse de l'autre - et qui, à défaut d'un signe nourrissant pour cet amour qui a toujours faim, vient tout à coup s'écraser sur les sables noires du désespoir.

sábado, 25 de outubro de 2008

A estética das palavras

Olc líth dolluid ind nathir
cosin n-athir dia chathir,
sáib sí céni i m-bith ché
co m-bu haithbe nad búe.

Irlandês Antigo, excerto de A Viagem de Bran.


Wearð him on Heorote to handbanan
wælgæst wæfre; ic ne wat hwæder
atol æse wlanc eftsiðas teah,
fylle gefægnod.

Inglês Antigo, excerto de Beowulf.


Naddhristir, ák nesta

norn til arfs of borna.
Þigg, Auða konr, eiða,
eiðsært es þat, greiða.

Nórdico Antigo, excerto de Saga de Egil


Pwyll Pendefig Dyfed a oedd yn argwydd ar seith cantref Dyfed. A threiglweith ydd oedd yn Arberth, prif lys iddaw, a dyfod yn ei fryd ac yn ei feddwl fyned i hela.

Galês Medieval, excerto de Mabigonion


Hyvä mutso, kaunis mutso, mutso valkeanverevä!
Hyvinpä ko'issa kuuluit, tyttönä ison ko'issa;
hyvin kuulu kuun ikäsi miniänä miehelässä!

Finlandês, excerto de Kalevala

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A vida de X

X andava na vida um pouco à maneira de Proust, observando a dos outros e o mundo como que espreitando por uma falha no tecido de Einstein, um pé no tempo, outro fora dele, ora em todo o lado, ora em lugar nenhum. Sabia encontrar nos outros e nas coisas aquela pontinha do fio em que começa o casulo do bicho-da-seda - que em criança me diziam que procurasse e que nunca consegui encontrar - porque o mundo são muitos casulos contidos uns nos outros, do infinitamente pequeno ao incomensuravelmente maior; e percebê-lo é encontrar todas as pontinhas, e desenrolá-las, e descobrir onde se tocam, onde se enriçam. X conseguia-o. X sabia o mundo e as pessoas. Mas X tinha um problema: era incapaz de escrever o que observava. Então X resignava-se e lia Proust.

(A todos os que lerem e o possam pensar: X não sou eu, ou nem sempre, ou não exactamente, ou talvez nunca.)


Auch fühlt er sich fremd in unserer Zeit; als gehöre er zwar zu meiner Familie, aber überdies noch zu einer andern, ihm für immer verlorenen, ist er oft unlustig und nichts kann ihn aufheitern.

Franz Kafka, in Elf Söhne

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Good question

Were it to be in my hands to change the unbearable, would i do what has to be done? Would i take my chances?

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Verba aliena V - Stories

Stories are like spiders, with all they long legs, and stories are like spider-webs, which man gets himself all tangled up in but which look so pretty when you see them under a leaf in the morning dew and in the elegant way that they connect to one another, each to each.

Neil Gaiman, in Anansi Boys

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Intenso

Intenso, porque não sei quando a próxima vez. Incessantes os beijos, para que os teus lábios perenemente tatuem os meus. Vigorosos o abraço e as mãos que te percorrem o corpo, como se quisesse rasgar-te a pele para sob ela me refugiar, vivendo apenas do teu odor. Ah! como me fartas de vida, de força e de coragem! E é de ti que me vem o amanhã!

terça-feira, 2 de setembro de 2008

De l'espoir

- Regarde, mon amour! Il y a le soleil qui se lève et la pluie qui cesse!

- C'est bien drôle, puisque l'été s'achève.

- Oui... ce seront peut-être les feuilles de nos chagrins qui tomberont cet automne.

- Je crois. Je crois en nous.

sábado, 30 de agosto de 2008

Em manadas

Aqui andam em manadas. Não. Não as vacas. São as nuvens. Vão passando em filinha, ali tão perto que parecem ir apressadas sabe-se lá onde e porquê. E vão gozando com os cá de baixo, mudando de forma indolentes, pregando de vez em quando a partida de uma chuvada sem aviso. Destemidas atiram-se contra os cabeços, descem vales e crateras. Assim cegam os que por lá andam, que lá se ficam queixando que a pele cola à roupa ou que a roupa cola à pele. Há os dias em que se juntam todas e vão lambendo as encostas, ocultando as ilhas em um véu de bruma, por vezes deixando em escárnio ao longe um rasgo de azul.
Aqui andam elas, as matreiras, brincando e atenazando os mortais. Mas deixem-me agora fugir da varanda, pois que já me molham o que escrevo, que não é maldizer nem lamento; afinal, digam-me lá: sem elas o que seria de todo este verde?

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Ad aquilam ab scorpio

Partindo do vasto Escorpião, deitado sobre o horizonte com Antares sanguínea por coração, subindo o olhar passamos pelo ténue Sagitário, até que surja nobre, voando no caminho lácteo, Aquila, que na cabeça ostenta Altair brilhante.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Mots d'autrui IV - Encore l'amour


L'ambre ne répand pas un parfum aussi doux que les objects touchés par l'object que l'on aime.

Ainsi la nature ayant fait l'amour le lien de tous les êtres, l'a rendu le premier mobile de nos sociétés, et l'instigateur de nos lumières et de nos plaisirs.

Bernardin de Saint-Pierre, in Paul et Virginie

domingo, 24 de agosto de 2008

Manhã parada

A manhã é parada nas ilhas irmãs. A neblina alta e amarelada filtra o sol e aquece o ar inundado pelo aroma das figueiras. Do outro lado do canal de prata, dorme negro o vulcão, resguardando os dois filhos ilhéus. Não fosse o Cruzeiro do Canal, rasgando a superfície imóvel do mar, julgaríamos contemplar um quadro sublime, dos que só a natureza tem arte para pintar.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Senhora das ilhas

Lança lá no alto o seu grito
A rapace senhora das ilhas
Sobre vales, crateras, lagoas,
Ecoa no seu lamento o mar
De solidão e isolamento
De tempestade e calmaria
Choro de tempos sem memória
Em que os deuses forjavam ilhas
E pintavam nesta tela negra
Com os verdes de todas as cores.

Mas diz-me, ó ave venerável
Quando as encontraste, as ilhas,
Ou se da bruma que as oculta
Nasceste para olhar por elas.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Sauve-moi

Maintenant que j'ai failli tout anéantir, sauve-moi, sauve-moi...

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Terra

Terra de fogo negro, terra de tempestade,
de nuvens velozes e sorrateiras.
Terra de todos os verdes, terra de mar vivo,
de deuses sem nome.
Terra húmida, de todos os cheiros.
Terra jovem, mergulhada no Oceano ancião.

Terra de asilo, terra egoísta,
que me reclama.

E eu deixo-me ficar, com raízes
cravado a este chão, com águas-vivas
queimado por este mar.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Limpando a alma à noite na praia

Aqui o tempo pára e com ele a dor. Enterrado na areia negra, na noite húmida e pesada. Defronte o canal e as luzes abrigadas pelo vulto sombrio do vulcão, adivinhado na bruma.

Quando tudo parece morto e vazio, vem o mar lamber-nos o corpo; e os medos e a dúvida desvanecem-se na profusão das pequenas luzes de vida que nascem do choque entre o mar das ilhas e a nossa pele cansada. E é então que me encontro, que sei quem sou, e só eu importo. Eu, as ilhas e o Atlântico.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Mots d'autrui III - René

On m'accuse d'avoir des goûts inconstants, de ne pouvoir jouir longtemps de la même chimère, d'être la proie d'une imagination qui se hâte d'arriver au fond de mes plaisirs, comme si elle était accablé de leur durée; on m'accuse de passer toujours le but que je puis atteindre: hélas! je cherche seulement un bien inconnu, dont l'instinct me poursuit. Est-ce ma faute si je trouve toujours des bornes, si ce qui est fini n'a pour moi aucun valeur? Cependant je sens que j'aime la monotonie des sentiments de la vie, et si j'avais encore la folie de croire au bonheur, je le chercherais dans l'habitude.

Chateaubriand, in René



terça-feira, 29 de julho de 2008

Saudade

Só agora compreendo verdadeiramente o que é a saudade. A falta que me fazes é avassaladora, talvez porque desta vez a distância é-nos imposta. Vejo-te em tudo e em toda a parte. A olhar para mim como mais ninguém olha, com os teus grandes olhos azuis raiados de sol; a fazer biquinho quando escreves; ainda a comer quando eu já vou no café; com o olhar perdido ao longe, enquanto te sentas silencioso ao meu lado; deitado a ver televisão, enquanto eu enterro a minha cabeça nos teus braços. E tantos outros fantasmas de ti, que trazem a dor mais intensa, mas também a vontade de continuar. Tento desesperadamente encontrar forças para lutar pelo nosso futuro, agora que nos roubaram o presente.
Lembra-te: só eu e tu podemos destruir o que construimos juntos. Mais ninguém, mais ninguém...
Amo-te.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O invencível

A seu tempo, as naus inimigas naufragarão na costa de lava do meu amor, arremetidas contra o basalto negro pelas tempestades engendradas contra os que ousam acometer o invencível.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Longing

Half of his soul withered, longing for the distant shores of the islands hidden in the atlantic mist.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Verba aliena IV - The present

"I'm sure Mr Denham would like to see our things, Katharine. I'm sure he's not like that dreadful young man, Mr Ponting, who told me that he considered it our duty to live exclusively in the present. After all, what is the present? Half of it's the past, and the better half, too, I should say," she added, turning to Mr Fortescue.

Virginia Woolf, in Night and Day

quinta-feira, 3 de julho de 2008

The well of memories

The well is unfathomly deep below its coal-dark waters, where memories were stored away in a chaotic order. Now there are times when he tries so hard to look for the scattered slices of the dreams he achieved, those who are so ephemerous that when we make them real they keep on being just that: dreams. Those are the times when he's scared to go on, towards the future, for the more we walk forward, the more we leave behind. And sometimes memories just are not enough. Now there are the nights he struggles to sleep while doing his best to recall the voice he heard coming out of the woman that was finally real after ten years. But after those magical moments, she faded away. The bones and flesh he saw, and the irretrievable notes he heard and felt, aren't but a spectre, a blurred reflexion in the waters of the well of memories. And others may laugh and say "Why should you care?", but they don't know, they don't understand. As for him, he wishes he could live those moments over and over again, at his will.

Em jeito de conversa com um amigo

A meu entender, o pós-modernismo coloca-nos frente a frente a uma terrível evidência: todo o conhecimento construído, mormente no caso das chamadas Humanidades, é a realidade de quem o constrói e nunca a realidade em si. Mas o que é essa realidade em si? Passada, presente ou futura, o que é ela? Existe? Há um absoluto? Ou só um todo feito de um número infinito de relativos possíveis? De que serve então o nosso esforço científico? Se nem de nós mesmos somos capazes de uma aproximação satisfatória...

sábado, 28 de junho de 2008

Cassiopeia

"Desculpa!" Era já hábito, a porta fechada a estalo. Um último olhar e as palavras, todas as noites como se fossem os derradeiros. Não vá o diabo tecê-las! Atravessa a estrada despovoada pelas horas avançadas. O peito cheio dele, a pele ainda húmida de ambos. A noite é de Verão, e até o ar quente da cidade tem outro cheiro, misturado com o dele, o cheiro que levava consigo para casa, como se não tivesse partido, mas ainda ali, presente, na pele e nos lábios. De dentro, uma vaga azul de mar e imensidão, como a uma proa de barco, ergue-lhe o olhar para o trilho de céu nocturno cingido de prédios invertidos. Lá brilha ténue uma única constelação, intimidada pelas luzes omnipresentes da cidade. E a memória de muitas noites insulares perdidas nas estrelas murmura: Cassiopeia.

sábado, 21 de junho de 2008

Minutos

Naqueles poucos minutos bruscos o mundo mudava. E à minha volta sentia as superfícies fluídas das paredes e dos objectos transfigurando-se, reajustando-se à nova realidade, como placas tectónicas após o sismo destruidor.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Verba aliena III - O afogado

Quem vestisse escafandro de ir ao fundo de almas, e mergulhasse na dele, veria pólipos de dor ramificando-a, tentáculos verdascando-a, peixes-agulha cravando-a; e dentre tal fundo de marinha angústia, estilhaços de cristais de Boémia por onde deuses malinos bebessem o sangue de trancadores naufragados, em orgias corsárias. Se o sangue todo cumprisse o mando de seu sofrer, abriria ao coração em estrelas do mar, de cinco pontas, arroxeado correria de vénula para vénula, em cardumes esfiampados de alforrecas, ou em gotas de coralina suspensas lhe erraria nas arteríolas, como se fossem contas dum colar já sem fio...

Vitorino Nemésio, in Terra do Bravo

domingo, 8 de junho de 2008

Lisboa

Desço a rampa metálica que leva ao cacilheiro: há dias em que amo Lisboa, derramada no Tejo sob um sol fugido do Mediterrâneo, genuinamente bela no seu alvo esplendor.

Amesterdão

Nas ruas de Amesterdão o ar atravessa-se a custo, espesso e amarelado, como seiva conduzida por ruas curvas que parecem não ter fim. E sufocariamos, se arremetendo por pequenas ruelas de casas diagonais não respirassemos o ar marítimo dos canais de águas turvas. Nas ruas de Amesterdão anseei pelo sol honesto de Lisboa, desejei as sombras gélidas de Edimburgo e Dublin em festa.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Mots d'autrui II - Les désirs cachés

Il ne parlait qu'à sa femme, le reste de l'hôtel n'avait pas l'air d'exister pour lui, mais au moment où un garçon prenait une commande, était tout près, il levait rapidement ses yeux clairs et jetait sur lui un regard qui ne durait pas plus de deux secondes mais dans sa limpide clairvoyance semblait témoigner d'un ordre de curiosités et de recherches entièrement différent de celui qui aurait pu animer n'importe quel client regardant même longtemps un chasseur ou un commis pour faire sur lui des remarques humoristiques ou autres qu'il communiquerait à ses ami. Ce petit regard court, désintéressé, montrant que le garçon l'intéressait en lui-même, révélait à ceux qui l'eussent observé que cet excellent mari, cet amant jadis passionné de Rachel avait dans la vie un autre plan et qui lui paraissait infiniment plus intéressant que celui sur lequel il se mouvait par devoir.

Marcel Proust, in Albertine disparue

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Homeland

My true country lies beyond
These dark shadowed shores.
It lies on sunny plains
On his white sandy hills
And golden scented fields.

My heart gently settles
In the soothing depths
Of his sky-blue lakes.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Paredes de lava

Paredes de lava negras, amolecidas pelos fetos, pelos musgos; aprisionam o calor do dia, recebem as gotas de bruma, ressoam ao som do grito do milhafre, do lamento das cagarras. A elas me encosto todas as noites e adormeço. Na cidade, as ilhas surgem no mar em sonhos.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Espalamaca / Sonho de mitologia açoreana

Subindo a Espalamaca, a estrada parece acabar onde acaba a ilha. E o olhar ora se precipita no canal até aos ilhéus, ora se ergue escalando a branda encosta do vulcão. No alto refugiam-se os deuses desconhecidos das ilhas, expirando o enxofre das entranhas. Pensam os homens que é deles o que não pode ser possuído; e a Virgem terrena ousa virar as costas ao Olimpo Atlântico, velando sobre a cidade mortal. Perante tal afronta, são mais piedosos aqueles imortais de lava, mar e vento, que o deus estrangeiro que com seu séquito aqui veio acostar.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Faibles traces

Je pense à ces endroits du passé qui restent malgré l'action ravageuse de l'oubli. On les évite, quand on y a trop souffert. On y revient toujours, quand on y a aimé éperdument. On a beau essayé d'oublier, mais on gardera à jamais en nous les faibles traces de ces amours décédés.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Terra redonda

Tu enim quam celebritatem sermonis hominum aut quam expetendam consequi gloriam potes? Vides habitari in terra raris et angustis in locis et in ipsis quasi maculis, ubi habitatur, uastas solitudines interiectas eosque, qui incolunt terram, non modo interruptos ita esse, ut nihil inter ipsos ab aliis ad alios possit, sed partim obliquos, partim transuersos, partim etiam aduersos stare uobis; a quibus exspectare gloriam certe nullam potestis.

M. Tulli Ciceronis, Somnium Scipionis

domingo, 4 de maio de 2008

A Lisboa

Lisboa,
és-me estrangeira,
e o Tejo
não me conhece só de tanto eu o ver.

sábado, 3 de maio de 2008

Hold me in chains

When i fall into disbelief, show me your faith. Hold me in chains and i'll gladly stay. Only then shall we overcome.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Blasé

Blasé,
Même l'absence m'indiffére.

Et le coeur s'éloigne
De ton visage oublié.

domingo, 27 de abril de 2008

Maré cheia

Impregnado de ti. Quando trespassa a pele, a carne e estala os ossos. Quanto mais de ti, mais de mim espalhado pela areia, quando te retiras como a maré cheia.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Gaeilge

crann
abhainn
am
múinteoir
anam
bóthar
fuinneoig
cailín
leabhar
báisteach
talamh
fear
fuacht
bh'fhéidir
leisciúil
Gaeltacht
solas
amáireach
grá
láimh

terça-feira, 8 de abril de 2008

O poço

É um poço sem fundo, daqueles que não existem a não ser em nós. Resta-me uma mão que já sangra de estar cravada à beira do abismo. Perco as forças. E a tua mão sem vida, sobre a minha, gelada no frio da ausência. E um dia caio. E será tarde para que me segurem.

domingo, 6 de abril de 2008

Verba aliena II - a'chlach

a'chlach

suathaibh mi, a ghaoithean, le
naidheachd às gach àirde: sìnibh orm

suath mi, a ghrèin, do
shoillse teas mo chridhe: sìn orm

suath mi, a ghealach, mo
leigheas na do ghilead: sìn orm

suathaibh mi, a shiantam, ur
frasan ga mo nighe: sìnibh orm

tàmh annam
sàmhchair


the stone

stroke me, winds, with
news from each quarter: rest on me

stroke me, sun, your
light heats my heart: rest on me

stroke me, moon, my
health in your whiteness: rest on me

stroke me, elements, your
showers wash me clean: rest on me

peace in me,
silence


Aonghas MacNeacail, in Laoidh an donais òig /Hymn to a young demon

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Ghost Song

While I'm asleep
My spirit crawls out
Of my belly button
And goes down to the sea

To gather the wind
The wires and the shore
To wander the hills
Like a day gone before

When beauty was in season
Oh! Beauty in season!
Endangered by reason
Great love with no law

Today I woke
And my spirit was gone
Still on the shore
Where he truly belongs

So I call
For him
Across
The wind
And
Rain

To come and bring beauty
Back in season
Oh! Beauty in season!
I'm in danger of reason
Losing love to this law

To this....


Patrick Wolf

domingo, 30 de março de 2008

The loch



I let my soul drop on the loch that day. Black like the blackness of his waters, wrapped in mistery like his blind depths. Oh how i long for my life on the shores of the Loch Ness!

sexta-feira, 28 de março de 2008

The Three Sisters



Mist veils their lofty heads,
hiding the sorrow in snow.
Gearr Aonach, Stob Coire nan Lochan
agus Aonach Dubh.
The gods weep down
the three sisters of Glencoe.


quinta-feira, 13 de março de 2008

Ondas

O Tempo avança pastoso em lava, entre os dias em que me chegas raro, desfeito em ondas que se demoram.

quinta-feira, 6 de março de 2008

segunda-feira, 3 de março de 2008

A descoberta

Traziam o mar vivo da ilha na pele, como se este ainda os reclamasse, já saudoso de os envolver. Os pés já amarelados pelo tufo vulcânico das rampas de que se atiravam ao mar inchados de liberdade, onde depois descansavam de tamanha alegria ingénua de se sentirem plenos, estendidos sob um Sol cúmplice de nuvens imprevisíveis. Traziam o mar vivo da ilha na pele, quando arremeteram pelo trilho de erva pisada. Ele seguia à frente, sentindo sem o saber o habitual chamamento das ilhas para que lhes descobrisse os caminhos e recantos que passava a acreditar serem seus e de mais ninguém, segredos partilhados somente com a terra que também era sua e a que pertencia sem se debater. Avançavam com passos molhados e descalços, sujos de vegetação e de lama salgada, o corpo vibrando da excitação do desconhecido. Breves canaviais envolviam-nos inesperados, escondendo por instantes o céu e o mar, como que para aumentar a doce expectativa que fora crescendo ao longo da caminhada. Agora estendia-se-lhes defronte uma encosta suave coberta de vegetação rasa, acostumada a resistir à fúria dos elementos, tão particular nas ilhas. Foi quando atingiram o cimo que viram. A rocha ressurgia nua, amarelada, apontando ao mar como a proa de um barco. Ele foi o primeiro a avançar. Abeirando-se da ponta, olhou com vertigem para o mar azul forte onde Nossa Senhora da Guia, divindade marinha transfigurada pelo Homem, mergulhava com firmeza o seu manto telúrico. E eis que olhando o horizonte, percebeu! Ao largo passavam as baleias, lentamente, rolando os dorsos negros à superfície em saudação ao céu e à terra, ferindo o mar de espuma branca. Levavam consigo o canto melancólico das ilhas e do mar, o chamamento que ecoara indefinido bem no fundo do rapaz. E saciado de plenitude, chegavam-lhe na brisa amena de Verão murmúrios de confirmação, És nosso e somos teus!

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Mots d'autrui I - Continuer

Continuer, voilà ce qui est difficile.

Au bout de toute liberté, il y a une sentence; voilà pourquoi la liberté est trop lourde à porter, surtout lorsqu'on souffre de fièvre, ou qu'on a de la peine, ou qu'on n'aime personne.

Ah! mon cher, pour qui est seul, sans dieu et sans maître, le poids des jours est terrible. Il faut donc se choisir un maître, Dieu n'étant plus à la mode.


Albert Camus, in La Chute

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Wartend

Ich vermisse seine himmelblauen Augen, seine milchige Haut, seinen unbeschreiblichen Duft... Und ich warte, immer warte ich...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Junto ao mar (das ilhas)

Junto ao mar - inebriante suficiência de mim mesmo. Exila-se a solidão. As páginas brancas, brancas ficam - as palavras vão no vento; caídas tornam-se espuma na crista das ondas. Mas a espuma é efémera, e as palavras cedo se tornam água, regressam às profundezas.

Junto ao mar. Quem me conhece? Eu não. O mar, o das ilhas, talvez.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Holding a bow

To restrain the heart when it feels too much, hit by the gloomy arrow that flies back whenever you're away for too long. Will i ever be able to say i'll just be fine, when i might be the one holding the bow?

domingo, 10 de fevereiro de 2008

De nocturna solitudine

Nas noites em que não temos ninguém que nos adormeça, embale na cadência de um respirar que não é o nosso, envolva numa estufa de odores alheios mas familiares e amados, nessas noites, deveriamos vaguear sob o céu nocturno, numa praia onde o mar nunca adormece, nas ruas de uma cidade onde o silêncio está de passagem, num campo aberto respirando a aragem ligeira da noite e onde as estrelas perdem todo o pudor, e em tantos outros lugares que o repouso do sol reinventa. Porque ao ar livre a solidão enche-nos de vida e de coragem, acicata-nos os sentidos, inebriante suficiência de nós mesmos. Mas entre quatro paredes, decompõe-nos em fraquezas, afoga-nos nas profundezas gélidas das nossas inseguranças, empurrados pelo ar pesado e imundo que respiramos a custo, e o sono abandona-nos incapazes de acreditar que novo dia virá, porque em nós se apagou a luz.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Quereríamos

É como uma pedra gélida de ângulos cortantes que se instala no coração. E retorce-se dilacerando o peito. Quereríamos arrancar o coração, deixar de sentir, morrer apenas um pouco, contanto que aliviasse a dor. Quereríamos ter alguém a quem fizesse diferença, nas noites em que a solidão alastra.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Lisboa : visões

Hoje vi Lisboa num quadro de tons de azul-marinho, tornando a cidade mais branca, menos caótica, dormindo à beira d'água, o tumulto dissimulado. E ao largo algumas velas passavam, aos meus olhos estáticas, fixas contra o fundo cerúleo. Hoje vi Lisboa pintada por uma tarde soalheira de inverno.


A cidade derramada em luzes no rio negro. O seu brilho engolido pelas águas nocturnas, enquanto outras se esquivam aéreas, de encontro à margem esquecida.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Cri proustien

Ô angoisses d'un esprit proustien!
Ô insouciance voulue, toujours inachevée!
D'un coeur lourd qui se heurte et saigne
Sous les coups intermittents de la jalousie!

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Arnheim

J'aurais peut-être le coeur plus léger si l'on m'accordait l'entrée au paradis d'Arnheim. Quel bonheur m'envahirait si je pouvais glisser sur ces eaux d'une pureté invraisemblable, emporté par ce crescent féerique d'ivoire en contemplant les paysages de miracle que seuls des mots nous apprennent.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Verba aliena I - Truth

Truth is not always in a well. In fact, as regards the most important knowledge, i do believe that she is invariably superficial. The depth lies in the valleys where we seek her, and not upon the mountain-tops where she is found.

Edgar Allan Poe, The Murders In The Rue Morgue

sábado, 5 de janeiro de 2008

Naquelas manhãs

Naquelas manhãs há plenitude no despertar. O sol nasce azul por entre pálpebras, brilhando só para mim; o ar é quente e seguro, ali onde a pele branca é macia.
Naquelas manhãs há o futuro capturado no presente; e o passado cai no esquecimento.
Naquelas manhãs o mundo não renasce no meio da solidão. Há dois corpos que repousam um no outro, que se reconhecem, que se assumem, que se aceitam: amam-se.
Se há momentos de pura felicidade, então é naquelas manhãs que os encontro.