sábado, 28 de junho de 2008

Cassiopeia

"Desculpa!" Era já hábito, a porta fechada a estalo. Um último olhar e as palavras, todas as noites como se fossem os derradeiros. Não vá o diabo tecê-las! Atravessa a estrada despovoada pelas horas avançadas. O peito cheio dele, a pele ainda húmida de ambos. A noite é de Verão, e até o ar quente da cidade tem outro cheiro, misturado com o dele, o cheiro que levava consigo para casa, como se não tivesse partido, mas ainda ali, presente, na pele e nos lábios. De dentro, uma vaga azul de mar e imensidão, como a uma proa de barco, ergue-lhe o olhar para o trilho de céu nocturno cingido de prédios invertidos. Lá brilha ténue uma única constelação, intimidada pelas luzes omnipresentes da cidade. E a memória de muitas noites insulares perdidas nas estrelas murmura: Cassiopeia.

sábado, 21 de junho de 2008

Minutos

Naqueles poucos minutos bruscos o mundo mudava. E à minha volta sentia as superfícies fluídas das paredes e dos objectos transfigurando-se, reajustando-se à nova realidade, como placas tectónicas após o sismo destruidor.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Verba aliena III - O afogado

Quem vestisse escafandro de ir ao fundo de almas, e mergulhasse na dele, veria pólipos de dor ramificando-a, tentáculos verdascando-a, peixes-agulha cravando-a; e dentre tal fundo de marinha angústia, estilhaços de cristais de Boémia por onde deuses malinos bebessem o sangue de trancadores naufragados, em orgias corsárias. Se o sangue todo cumprisse o mando de seu sofrer, abriria ao coração em estrelas do mar, de cinco pontas, arroxeado correria de vénula para vénula, em cardumes esfiampados de alforrecas, ou em gotas de coralina suspensas lhe erraria nas arteríolas, como se fossem contas dum colar já sem fio...

Vitorino Nemésio, in Terra do Bravo

domingo, 8 de junho de 2008

Lisboa

Desço a rampa metálica que leva ao cacilheiro: há dias em que amo Lisboa, derramada no Tejo sob um sol fugido do Mediterrâneo, genuinamente bela no seu alvo esplendor.

Amesterdão

Nas ruas de Amesterdão o ar atravessa-se a custo, espesso e amarelado, como seiva conduzida por ruas curvas que parecem não ter fim. E sufocariamos, se arremetendo por pequenas ruelas de casas diagonais não respirassemos o ar marítimo dos canais de águas turvas. Nas ruas de Amesterdão anseei pelo sol honesto de Lisboa, desejei as sombras gélidas de Edimburgo e Dublin em festa.