quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O corpo

O corpo desistira, abandonara-se a si próprio. Jazia agora numa praia sem mar à vista, coberto por areia de outras paragens, cujos finos grãos, pela acção acomodadora do tempo, haviam penetrado fundo, enchendo até mesmo o coração. Quando a neblina cerrada se retirou sem prenúncio, revelou-se um promissor mar sereno, de um azul brilhante, reflectindo carícias de um sol novo. E foi então que começou a soprar a doce brisa, dádiva marinha. Depressa expôs o corpo lívido à amenidade da recém-renascida paisagem litoral. O corpo ergueu-se, voltou a acreditar, ensaiou os primeiros passos como se fossem na verdade os primeiros. E eis que a brisa se tornou rajada, removendo os grãos instalados no interior; e leve, o corpo trilhou o caminho que o vento lhe indicava, semeado de promessas a que só um coração gelado por Invernos sem fim não se entregaria. Mas, de quando em quando, parava olhando para trás com insegurança. É que alguns grãos renitentes persistiam embutidos no coração e no cérebro, alimentados pelas forças reencontradas do corpo, e vibravam de saudade da praia mãe. Então o corpo, desejando deveras seguir em frente, gritava ao vento não sem algum desespero: "Mais forte! É preciso que sopres ainda mais forte!"

2 comentários:

Filipe Gouveia de Freitas disse...

Largar raízes! Porque não pode ser fácil? Perder, o quente, o conforto, o embrançado de tudo. Que para ti o vento sopre mais forte! Ainda mais forte!

Taiyo85 disse...

Fantástico...