quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Vergílio Ferreira

Tecida numa malha de um existencialismo desconcertante, a narrativa avança sincopada, num ritmo estonteante, que faz com que o leitor prossiga folegando a custo, tropeçando em abismos de desgraça súbita e desespero, para mais tarde melhor sentir a vertigem dos momentos de plenitude do ser, do assombro causado pela revelação da suficiência de si mesmo. E sempre a morte, espreitando e atacando inopinadamente, ora na planície monótona, ora sob a neve que cobre uma qualquer terriola escondida na montanha.

Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando - sou o Homem! Do desastre universal ergo-me enorme e tremendo. Eu.

Vergílio Ferreira, in Alegria Breve

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Ilhéus I

Da tua face as searas
Ondulam acariciadas
Pela doce brisa de Eros.

Sur l'herbe drue, nourrie par le sol volcanique, nous étendrions nos corps alourdis par le chagrin.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Horizonte em sangue

Acordávamos cedo, demasiado cedo. A todos, o sono ainda nos agarrava aos colchões dos beliches, que começavam a arrefecer privados das únicas fontes de calor naquelas manhãs frescas de Verão. Mas contra ele lutava a vontade de, dia após dia, mergulhar em três mil anos de passado. Três mil, se os conto bem. Atravessávamos então a vila, onde a noite ainda teimava em ficar, deixando-se penetrar a custo por uma luminosidade tímida. Era sempre a subir e, nas ruas estreitas, já algumas mulheres esfregavam religiosamente as paredes de suas casas, como se a vida dependesse do branco irrepreensível que, avançando o dia, refulgiria sob o sol alentejano. Até que, virando um esquina, encontrávamo-nos face à grande escadaria que levava à ermida. Na memória falta-me o nome, mas sei que era branca do branco das casas, e um azul celeste pintava-a em redor. As traseiras davam para a escavação - um Deus orgulhoso não olha de frente os seus antecessores sem nome, dormindo esquecidos dos homens sob a terra que desconhece o oblívio. Sentados nas pedras sobremaneira antigas, esperávamos que o dia viesse permitir-nos o trabalho. Quando o fazia, o Sol erguia-se em ferida, derramando sangue no horizonte, tingindo-o de um encarnado tão intenso, que a sua aparência sobrenatural gravou no meu espírito as palavras que aqui escrevo decorrido mais de um ano desde então.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Um desafio

Aqui vai a resposta a um desafio proposto por uma libelinha: escolher um grupo ou artista e responder às questões com títulos de músicas. Nunca faço estas coisas, mas não recuso nada a uma libelinha!! Pode ser perigoso! De resto, não vou "marcar" ninguém. This is just for you, little firefly.

Artista: Sigur Rós

1. És homem ou mulher? "starálfur (staring elf)"


2. Descreve-te:
"hjartað hamast (the heart pounds)"


3. O que as pessoas acham de ti? "við spilum endalaust (We play endlessly)"


4. Como descreves o teu último (antes do actual) relacionamento?
"gobbledigook" (sem tradução, eu chamar-lhe-ia Prankster boy)


5. Descreve o estado actual da tua relação amorosa: "viðrar vel til loftárása (good weather for airstrikes)"


6. Onde querias estar agora? "svo hljott (so quiet)"


7. O que pensas a respeito do amor?
"inní mér syngur vitleysingur (inside me a lunatic sings)"


8. Como é a tua vida? "saeglópur (a lost seafarer)"


9. O que pedirias se pudesses ter só um desejo? "hoppípolla (jumpin' puddles)"


10. Escreve uma frase sábia: "ágaetis byrjun (an alright start)"

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Um concerto

Hoje, sem as ver, senti as paisagens da Islândia traduzidas em música. O branco e os sons da neve, lagos e montanhas e planícies desoladas paradas no tempo, imóveis: vi-os nos acordes lentos e repetitivos, na voz etérea que se eleva como o som de um vento solitário percorrendo imensidões. Mas também a fúria vulcânica, pulsando sob a calma aparente, rompendo a terra sem aviso, recriando-a: vi-a na música que cresce pacientemente, até que explode em vibrações de uma densidade e intensidade tais que desfazem o último laço que ainda nos ligava ao chão que pisávamos, para nos levar para norte, bem para norte. E agora vou dormir. Talvez sonhe com a aurora boreal.

domingo, 2 de novembro de 2008

La vague

Et cette douleur qu'il crut éteinte s'insinuait à nouveau comme une vague océanique lente et presque imperceptible - dont l'épicentre était le coeur ébranlé par le soupçon inconscient d'avoir été oublié, par cette absence silencieuse de l'autre - et qui, à défaut d'un signe nourrissant pour cet amour qui a toujours faim, vient tout à coup s'écraser sur les sables noires du désespoir.