sábado, 30 de agosto de 2008

Em manadas

Aqui andam em manadas. Não. Não as vacas. São as nuvens. Vão passando em filinha, ali tão perto que parecem ir apressadas sabe-se lá onde e porquê. E vão gozando com os cá de baixo, mudando de forma indolentes, pregando de vez em quando a partida de uma chuvada sem aviso. Destemidas atiram-se contra os cabeços, descem vales e crateras. Assim cegam os que por lá andam, que lá se ficam queixando que a pele cola à roupa ou que a roupa cola à pele. Há os dias em que se juntam todas e vão lambendo as encostas, ocultando as ilhas em um véu de bruma, por vezes deixando em escárnio ao longe um rasgo de azul.
Aqui andam elas, as matreiras, brincando e atenazando os mortais. Mas deixem-me agora fugir da varanda, pois que já me molham o que escrevo, que não é maldizer nem lamento; afinal, digam-me lá: sem elas o que seria de todo este verde?

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Ad aquilam ab scorpio

Partindo do vasto Escorpião, deitado sobre o horizonte com Antares sanguínea por coração, subindo o olhar passamos pelo ténue Sagitário, até que surja nobre, voando no caminho lácteo, Aquila, que na cabeça ostenta Altair brilhante.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Mots d'autrui IV - Encore l'amour


L'ambre ne répand pas un parfum aussi doux que les objects touchés par l'object que l'on aime.

Ainsi la nature ayant fait l'amour le lien de tous les êtres, l'a rendu le premier mobile de nos sociétés, et l'instigateur de nos lumières et de nos plaisirs.

Bernardin de Saint-Pierre, in Paul et Virginie

domingo, 24 de agosto de 2008

Manhã parada

A manhã é parada nas ilhas irmãs. A neblina alta e amarelada filtra o sol e aquece o ar inundado pelo aroma das figueiras. Do outro lado do canal de prata, dorme negro o vulcão, resguardando os dois filhos ilhéus. Não fosse o Cruzeiro do Canal, rasgando a superfície imóvel do mar, julgaríamos contemplar um quadro sublime, dos que só a natureza tem arte para pintar.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Senhora das ilhas

Lança lá no alto o seu grito
A rapace senhora das ilhas
Sobre vales, crateras, lagoas,
Ecoa no seu lamento o mar
De solidão e isolamento
De tempestade e calmaria
Choro de tempos sem memória
Em que os deuses forjavam ilhas
E pintavam nesta tela negra
Com os verdes de todas as cores.

Mas diz-me, ó ave venerável
Quando as encontraste, as ilhas,
Ou se da bruma que as oculta
Nasceste para olhar por elas.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Sauve-moi

Maintenant que j'ai failli tout anéantir, sauve-moi, sauve-moi...

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Terra

Terra de fogo negro, terra de tempestade,
de nuvens velozes e sorrateiras.
Terra de todos os verdes, terra de mar vivo,
de deuses sem nome.
Terra húmida, de todos os cheiros.
Terra jovem, mergulhada no Oceano ancião.

Terra de asilo, terra egoísta,
que me reclama.

E eu deixo-me ficar, com raízes
cravado a este chão, com águas-vivas
queimado por este mar.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Limpando a alma à noite na praia

Aqui o tempo pára e com ele a dor. Enterrado na areia negra, na noite húmida e pesada. Defronte o canal e as luzes abrigadas pelo vulto sombrio do vulcão, adivinhado na bruma.

Quando tudo parece morto e vazio, vem o mar lamber-nos o corpo; e os medos e a dúvida desvanecem-se na profusão das pequenas luzes de vida que nascem do choque entre o mar das ilhas e a nossa pele cansada. E é então que me encontro, que sei quem sou, e só eu importo. Eu, as ilhas e o Atlântico.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Mots d'autrui III - René

On m'accuse d'avoir des goûts inconstants, de ne pouvoir jouir longtemps de la même chimère, d'être la proie d'une imagination qui se hâte d'arriver au fond de mes plaisirs, comme si elle était accablé de leur durée; on m'accuse de passer toujours le but que je puis atteindre: hélas! je cherche seulement un bien inconnu, dont l'instinct me poursuit. Est-ce ma faute si je trouve toujours des bornes, si ce qui est fini n'a pour moi aucun valeur? Cependant je sens que j'aime la monotonie des sentiments de la vie, et si j'avais encore la folie de croire au bonheur, je le chercherais dans l'habitude.

Chateaubriand, in René