Era, agora mais do que nunca, para oeste que se lhe projectava a alma, agulha magnética querendo quebrar o vidro que a contém. Sepultado na cidade, sabia-o longamente distante na ilha. Quando os primeiros dedos da noite vinham apagar os espaços de azul que lhe recordavam os dois pedaços de céu profundo onde, há mais de três anos atrás, guardara o coração, forçoso se lhe tornava redefinir o processo da memória associativa, única droga eficaz no acalmar dos sintomas lancinantes da saudade. Começava então por percorrer a pele dele nas orlas das nuvens esparsas, enrubescidas pela luz marcescente de um astro já declinado. Terminava acariciando os cabelos teimosos nos contornos das sombras de árvores debruadas contra o firmamento indeciso do crepúsculo. E na fresca aragem nocturna de um inverno senil, insinuava-se sobre os lábios o beijo primaveril que prometia uma convalescença próxima.
sábado, 26 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
Findchán
À mão que lhe apodrecera por a ter colocado em nome de Deus sobre a cabeça do homem que amava - um assassino, diziam - Findchán enterrou-a antes que mãos de outros o sepultassem. Resignado com o castigo que então cria justo, chegou o dia em que forçoso lhe era trocar o mundo pelo lugar que lhe fora destinado nos reinos inferiores. Aí, comprazendo-se pela eternidade na companhia de sábios daemones benévolos, considerava os sucessos dos que ainda vivos iam navegando nas correntes vagarosas da História. Era com um sorriso sombrio, apenas esboçado, que via Deus tirano regozijando-se nas miríades de mãos humanas que impunham, em seu nome, a morte sobre cabeças inocentes. Findchán, desprezando semelhante hipocrisia, deixara já de tentar compreender porque não se lhes gangrenavam os membros revigorados pelo ódio, quando o seu fora condenado por amor.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Cormac - uma narrativa
À nona tentativa, Cormac avistou o ermo apetecido no coração triangular de nova ilhas escondidas a sudoeste. Selvagens, afiguravam-se-lhe fragmentos há muito perdidos da sua pátria. Mas ali, em lugar do Deus que conhecia, apenas vislumbres de esquivas divindades agrestes, indiferentes perante o homem que olhavam agora não sem alguma curiosidade, por entre a indiferença de uma ancestral altivez. Os seus mandamentos não podiam ser lidos em sagradas escrituras: tão-só adivinhados num restolhar de folhas, em vocábulos murmurados pelas ondas às rochas negras ou no silêncio ensurdecedor de uma cratera em repouso. Convertendo-se a esta religião, cujos cânones haviam sido esquecidos na sua terra há muitos ciclos atrás e em que encontrava enfim a paz que procurara em vão em tantas navegações estéreis, Cormac escolheu por mosteiro o tronco de uma faia. E ali permanece, líquen milenar contemplando o vulcão nas manhãs paradas das ilhas.
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