Debruço-me comigo no meu poço
- Tudo fundo sonoro e emparedado -
E, rente aos tampos, ouço, ouço
Meu coração aproximado.
Mas de ouvi-o sou pálido e sem pulso:
Meu sangue foi preciso para ouvidos
E bate os mares e a terra, avulso
Nos próprios glóbulos perdidos.
Quem deseje saber o que se escuta
Nesta parede intolerável,
Veja se cabe em minha gruta:
Impenetrável! Impenetrável!
Que frios só seu chão calcaram
E sua abóbada sou eu
Nas tarde em que me levaram
Os meus amores o que era meu.
E já seu eco é uma humidade,
Leve chorume do escuro
Que se aprofunda em saudade
E em minha carne se faz muro.
Só luz dos musgos me distrai
Os olhos das naves frias
Na furna imensa em que se esvai
O fio de água dos meus dias.
Tão aflorada e tão profunda,
Tão bela no pedraço e na leveza,
Tão forte nas marés de que se inunda,
Aberta ao mar e à lua acesa!
Seus corredores complicam-me na sombra,
Um dedal de silêncio abre uma pedra,
Rorejam gotas para alfombra
Do vácuo de alma que lá medra.
De líquenes veste o sonho a aurora
Que dificulta o poço poço;
A lágrima enche de hora a hora
O copo ao menino e moço.
Mas estrias de lava, quem lhe entende,
Se ali riscou fogo vermelho
Alto sinal que só acende
Meu coração, palheiro velho?
E estalactites, estalagmites,
Correspondências aguçadas,
Enxofre, bafio, pirites,
Homens fugidos, mulheres choradas.
Vai o escuro furando o poço ardente,
Ouvem-se no oco as águas:
Ah, que barulho frio e imoto
Enruga a minha vida quente,
O meu secreto lençol de águas
Em que, nenúfar, bebo e broto!
A furna trava de mistério:
Sua garganta aberta ao dia
Calou o íntimo minério
Da minha estreme poesia.
Cala-o para que eu próprio vá batendo,
Dos martelos comuns abandonado,
O possível no opaco de atro urdume:
Que eu levo fogo pegado
E ninguém me pega lume.
Mas, se ardido por mim, me devo só,
A escravidão que tenho ei-la diuturna:
É estar aqui, de ouvido impresso em pó,
A ouvir-me velho ouvindo a furna.
Vitorino Nemésio
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